A Associação das Professoras e dos Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB, o Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP, a Associação de Estudos de Literatura e Ecocrítica – ASLE/Brasil e demais entidades e professores que esta subscrevem tornam pública a seguinte manifestação a respeito do Projeto de Lei sobre Licenciamento Ambiental, aprovado pela Câmara dos Deputados e ora em tramitação junto ao Senado Federal:
1) O Processo Legislativo
A Constituição Federal, ao disciplinar os tipos de atos legislativos, oferta, em relação à elaboração de cada um deles, um procedimento específico. Quando tais ou quais matérias são tratadas por lei complementar, isto significa que sua relevância, ao ver do Constituinte, é de tal monta que não pode estar sujeita a lei que seja passível de modificação pelo processo legislativo comum. O projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, em diversas passagens, altera conceitos e regramentos disciplinados pela lei complementar n° 140/2011, subvertendo com isso o princípio da simetria das formas legislativas, segundo o qual um diploma normativo só pode ser modificado por diploma normativo de idêntica natureza.
2) A Dispensa de Licenciamento
O projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental dispensa do licenciamento ambiental muitas atividades e empreendimentos potencialmente causadores de degradação ambiental nas áreas de infraestrutura, distribuição de energia, cultivo de espécies de interesse agrícola e de pecuária extensiva etc. A dispensa de licenciamento de obras de saneamento básico (apenas um dentre os vários casos de dispensa) pode provocar irreversível contaminação do lençol freático. A previsão de dispensa legal, no cenário brasileiro atual de desmonte da política ambiental, crise climática e desmatamento acelerado, implica assumir o risco de um trágico futuro, com a multiplicação das agressões ambientais já existentes. Leve-se em conta, ainda, o agravamento da insegurança jurídica, eis que o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, já declarou inconstitucionais normas estaduais que dispensaram o licenciamento ambiental, por violarem o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
3) A Licença por Adesão e Compromisso
O projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental prevê uma nova forma de Licença Ambiental: a Licença por Adesão e Compromisso (LAC). Trata-se de um procedimento declaratório simplificado e sem controle, que deveria ser exceção e pode virar regra para a maioria dos empreendimentos. Essa modalidade "automática" de licenciamento ambiental, com fiscalização apenas por amostragem, fragiliza e muito esvazia o instrumento do licenciamento ambiental, tão essencial à observância do artigo 225 da Constituição Federal.
4) A Responsabilidade dos Bancos e as Barreiras Econômicas
As disposições constantes do artigo 54 do projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental alteram sobremaneira a regra do § 1° do artigo 14 da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente, na medida em que admitem que as instituições financeiras não sejam responsabilizadas pelos danos ambientais ocorridos em razão da execução de empreendimento ou atividade por elas financiados, desde que tenham exigido do empreendedor a exibição da licença ambiental. No entanto, a nova regra, além de violar de forma direta a norma prevista no § 3° do artigo 225 da Constituição Federal, torna sem efeito os Princípios do Equador, incorporados às atividades bancárias, no Brasil, por meio da resolução n° 4.327, de 25 de abril de 2014 do Banco Central do Brasil.
5) Os Povos e Comunidades Tradicionais e Quilombolas
O projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental esvazia as garantias de participação de quilombolas, povos e comunidades tradicionais, na medida em que simplifica o procedimento de consultas e audiências públicas, sem uma distinção clara de objetivos, e não prevê nenhuma regra que atenda à especificidade do direito de consulta assegurado pela Convenção OIT 169 (artigos 1°, 8° e 13°). Além disso, ao restringir a manifestação dos órgãos competentes às hipóteses de terras quilombolas já tituladas, fere a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que considera a função declaratória do Poder Público no reconhecimento destes territórios, tornando mais suscetíveis a impactos aqueles territórios que estão em processo de titulação, ressaltando que neste aspecto fere os direitos territoriais congênitos de povos tradicionais, assegurado pela Convenção 169 da OIT. Deve-se ainda ressaltar que o artigo 42 do projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental traz regra flexibilizadora, que pode vulnerar o uso de territórios tradicionais, inclusive permitindo que terceiros dele venham a se utilizar indevidamente.
6) A Guerra Ambiental Interfederativa e a Autonomia Municipal
As disposições dos artigos 12 e 16 do projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental afrontam as normas constitucionais previstas nos artigos 30, VII e 182 da Constituição de 1988. A redação dos dispositivos impugnados afronta o princípio constitucional da autonomia municipal, ex-vi do artigo 30, inciso VIII, bem como as normas da política urbana, considerando-se que o município é responsável não só pelo ordenamento de seu território, como também pela execução da política de desenvolvimento urbano, cujas regras deverão estar expressas no plano diretor, em caso de cidades com mais de vinte mil habitantes. Além disso, essas novas regras põem em risco as normas urbanísticas federais, no caso, o Estatuto da Cidade, a Lei do Parcelamento Urbano e, também, a Lei Orgânica do Município. De outro lado, a emissão da certidão de uso, parcelamento e ocupação do solo constitui um instrumento adequado para o município exercer seu poder de polícia administrativa sobre as formas de ocupação do solo, que, ademais, devem atender ao Plano Diretor da respectiva cidade, que delimita o uso do solo de forma compatível com o zoneamento estabelecido no Plano. Enfim, a exclusão da necessidade da referida certidão afasta do município a competência comum atribuída pela Carta Magna de "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas", do inciso VI, do artigo 23 da Constituição Federal, de que a referida certidão constitui um dos instrumentos.
7) As Unidades de Conservação
A necessidade de observância do que consta nos planos de manejo de Unidades de Conservação – UCs, relativamente às atividades e aos empreendimentos não sujeitos ao licenciamento ambiental pode gerar danos irreversíveis porque, aproximadamente, 36% das UCs, no plano federal, não possuem esse instrumento de gestão e aquelas que o possuem, muitas vezes, contam com documentos desatualizados. De igual modo, preocupa o fato de que as manifestações previstas nos artigos 39 e 40 do projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, sobre os termos de referência e os demais estudos ambientais, quando exigidas, são apenas opinativas, não vinculando o órgão licenciador, ainda que a UC seja diretamente afetada pelo empreendimento. O prazo para manifestação é exíguo, considerando as estruturas dos órgãos ambientais e a complexidade dos documentos submetidos à análise. Já as pesquisas e demais estudos técnicos, quando estabelecidos pela autoridade licenciadora, podem ser realizados em qualquer categoria de UC, inclusive de proteção integral, sendo que o gestor será apenas comunicado, com 15 dias de antecedência, não podendo se opor à sua realização, ainda que isso possa gerar impacto no interior da UC, em flagrante prejuízo à biodiversidade.
8) As Terras Indígenas
O projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental exclui da exigência de licenciamento todas as terras indígenas ainda não demarcadas. Limita-se a prever manifestação meramente consultiva da FUNAI, adstrita às terras demarcadas ou tituladas. Ademais, a tramitação do projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental descumpriu o artigo 6° da convenção n° 169 da OIT, que determina que os governos devem "consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente". E, definitivamente, o projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental afronta o artigo 231, § 4° da Constituição Federal, que assegura a inalienabilidade e indisponibilidade dos direitos territoriais indígenas.
9) As Condicionantes Ambientais
As condicionantes ambientais são firmadas no ato da concessão das licenças e devem ser obedecidas pelo empreendedor. Ocorre que o texto do projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental aprovado limita significativamente a sua abrangência, pois as restringe aos aspectos exclusivamente ambientais, desconsiderando os econômicos, sociais e culturais, indissociáveis para o alcance do desenvolvimento sustentável. Ademais, o projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental exige que as condicionantes tenham relação direta com a atividade, o que limita de forma desaconselhável as compensações ambientais, que poderiam beneficiar a mesma bacia hidrográfica, por exemplo. Cria-se, ainda, um recurso contra as condicionantes de uma licença já expedida, ao qual pode ser atribuído efeito suspensivo, podendo ensejar em graves danos ambientais. O PL veda, ademais, a sanção pelo descumprimento de condicionantes, caso apresentada “justificativa técnica”; entretanto, mera justificativa do empreendedor não pode eximi-lo de sua responsabilidade ambiental, ferindo princípios basilares. Esses pontos, longe de trazerem a segurança jurídica esperada de uma licença, darão margem a intensa judicialização de licenciamentos.
10) Os Procedimentos Administrativos
Não existe no licenciamento ambiental uma acusação ou um litígio. Por isso, o artigo 2°, inciso I, da lei complementar n° 140/2011, que não pode ser revogado por lei ordinária, dispõe que o licenciamento ambiental constitui procedimento administrativo – e não processo administrativo. Segundo seus termos, o empreendedor, o Poder Público e a sociedade civil buscam compatibilizar a atividade econômica com a proteção ambiental (lei n° 6.938/1981, artigo 2°), adotando os melhores métodos e as melhores técnicas possíveis para tornar o empreendimento mais sustentável, eficiente e juridicamente seguro. Vale lembrar que o Poder Público e a coletividade devem proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, e que as atividades econômicas devem ter em conta a proteção ambiental (artigos 170 e 225 da Constituição). Por essas mesmas razões, somadas à extensão da disciplina que se pretende com a Lei Geral do Licenciamento Ambiental e à competência suplementar dos Estados e Municípios, tem-se como descabida a aplicação subsidiária da lei n° 9.784/1999.
São Paulo, 20 de Maio de 2021
Instituto Brasileiro de Advocacia Pública - IBAP
Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB
Associação para o Estudo da Literatura e Meio Ambiente do Brasil – ASLE-Brasil
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